O GENOCÍDIO (No cinema)
Um dos filmes mais conhecidos e premiados sobre Ruanda, chama-se “Hotel Ruanda”, do diretor Terry George. Ele conta a história de um hutu chamado Paul Rusesabagina. Na época ele era gerente do “Hotêl des Milles Collines” e através de seu bom coração, bons contatos e um pouco de suborno, conseguiu salvar a vida de mais de 1.200 tutsis, que permaneceram abrigados no hotel durante as matanças. O filme mostra que em Ruanda o clima era de tensão, e em abril de1994, as rádios começavam a anunciar que alguma “coisinha” iria acontecer em Ruanda nos próximos dias e que o som de balas e granadas iria ser ouvido. “‘Nas duas últimas semanas, toda Kigali tem vivido sob a ameaça de uma operação relâmpago, cuidadosamente preparada, para eliminar todos os que dão trabalho ao presidente Habyarimana. Então, na noite de 06 de abril de 1994, as rádios anunciavam que o avião onde o presidente Habyarimana e seu colega hutu Cyprien Ntaryamira, presidente do Burundi estavam, havia sido derrubado e não havia sobreviventes. Na época, a FPR foi responsabilizada pelo “atentado” e esse teria sido o principal motivo, o estopim, para que todos os hutus matassem todos os tutsis. Essa era ordem. Porém, diante dos fatos anteriormente narrados, fica claro que o assassinato do presidente fora premeditado e organizado pelos líderes hutus e não pelos tutsis. O Poder Hutu não estava satisfeito com o presidente já há algum tempo. Não o achavam suficientemente severo com os tutsis, a população estava cada vez mais pobre e como se não bastasse, o presidente vinha assinando acordos de paz e estabelecendo cessar-fogo entre os hutus e tutsis, tudo com a vistoria da ONU. Relatos dos sobreviventes do massacre contam que logo após a queda do avião em que estava o presidente, uma onda de assassinatos e pilhagem começou e instintivamente os tutsis abandonavam suas casas e procuravam abrigos. Nas estradas começaram a surgir bloqueios, onde as pessoas eram revistadas e suas identidades era a maior prova de suas etnias e, consequentemente suas posições políticas.
O que se pode constatar depois do trabalho dos veículos de comunicação e do julgamento dos principais envolvidos, é que a morte do presidente Habyarimana foi arquitetada pelo Poder Hutu, onde todos os líderes oposicionistas ou líderes moderados não só deveriam como seriam os primeiros a serem assassinados. Além da conveniente justificativa de ataque que suas mortes proporcionavam. A exemplo do que ocorreu com a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana, cuja casa foi cercada por soldados belgas da UNAMIR. No entanto, o contingente contava somente com dez soldados, que em menor número e inferiormente armados, acabaram sendo seqüestrados, torturados e mortos pelo exército ruandês. Este fato foi decisivo para que a ONU diminuísse ainda mais sua intervenção em Ruanda, pois passou a retirar seus soldados do país e a apoiar os estrangeiros a deixar o Estado. Retiravam os “brancos” dos hospitais, igreja, maternidade, convento e os levavam de carro até o aeroporto, onde seguiam para seus países ou para qualquer outro lugar fora dali, que fosse seguro.
Valérie Nyirarudodo, enfermeira e parteira na maternidade Sainte-Marthe, lembra-se: ‘Eles pararam defronte do portão. Pediram às três irmãs brancas que aprontassem a bagagem de mão, imediatamente. Disseram: ‘Não adianta nada perder tempo com despedidas, é pra já’. Essas suíças pediram para ser acompanhadas por suas colegas tutsis de capuz branco. Os militares responderam: ’Não, elas são ruandesas, o lugar delas é aqui, é preferível deixa-las com seus irmãos e irmãs’. O comboio partiu, seguido por uma caminhonete de interahamwe cantando. É claro que pouco depois as freiras tutsis foram decepadas, como os outros’. (HATZFELD, 2005, p.
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O filme “Tiros em Ruanda” mostra claramente que os soldados da ONU não estavam ali para estabelecerem ou manterem a paz. Faziam questão de ponderar o tempo todo que manter a paz dependia do desejo e esforço dapopulação (hutus e tutsis). Eles estavam ali somente para monitorá-la. Neste filme, o conselheiro de Kigali, Zibomana deixa claro que os hutus preferiam que os “brancos” fossem embora, para que não atrapalhassem o “trabalho” deles. Os hutus diziam que os “ruandeses devem cuidar dos ruandeses”. E graças a intervenção da ONU e de países como a França, os “brancos” foram mesmo embora, não querendo ver aquilo em que não podiam acreditar. Um genocídio é algo sobrenatural, como diziam os próprios ruandeses. O extermínio da população tutsi, que havia sido preparado há meses pelos hutus finalmente teve início. No entanto, esse “trabalho”, como era denominado pelos hutus, não ficou restrito apenas ao exército e a interahamwe, mas, como se pode ver no filme “Tiros em Ruanda”, se estendeu a toda população que através das rádios era conclamada a matar todos os tutsis e hutus moderados. E de repente, cidadãos comuns pegavam facões e saiam às ruas para “caçar” os tutsis, para exterminá-los. Por cidadãos comuns entendem-se os lavradores dos campos, professores, médicos, jogadores de futebol, prefeitos, padres e pessoas que conviviam lado a lado, como vizinhos. Nada e nem ninguém (salvo os que conseguiram escapar ou se esconder) estava a salvo. Nas colinas, onde o número de lavradores hutus era muito grande, reuniões eram feitas em campos de futebol e a população era orientada a matar todos os tutsisHATZFELD, 2005, p. 20)Jean Hatzfeld é um jornalista francês que escreveu sobre o genocídio de Ruanda, o holocausto ocorrido na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial,e sobre várias outras guerras como a da Bósnia e Somália. Em seu livro Uma temporada de facões: relatos do genocídio de Ruanda, o autor ouviu o depoimento de um grupo de dez matadores em Ruanda, presos na penitenciária de Rilima, onde cumprem pena pelos crimes cometidos durante as matanças. Eles eram amigos desde a infância, estudaram juntos e moravam perto uns dos outros. A franqueza de seus relatos impressiona e por isso serão transcritos, para mostrar a realidade daquela época, assim como os relatos de algumas vítimas de seu livro e também da obra de Philip Gourevitch. Ignace Rukiramacumu explica como as matanças nas colinas eram organizadas: IGNACE: A gente se reunia numa multidão de mil pessoas no campo, partia para as matas em companhia de cem ou duzentos caçadores, éramos levados por dois ou três homens armados de fuzil, militares ou intimadores. Na borda lamacenta das primeiras fileiras de papiros, a gente se separava em grupos de conhecidos. (HATZFELD, 2005, p. 23) Por serem lavradores, a maioria dos hutus estava familiarizada com o facão. No entanto, havia os que nunca tinham matado nem mesmo uma galinha sequer e pagavam a outras pessoas para fazê-lo. Por isso, quando as matanças começaram, a maioria tinha técnica apurada para matar as pessoas. As que não sabiam, ou se intimidavam com o facão, a interahamwe estava lá para ensiná-los. Além do que, o facão custava menos do que o fuzil e por isso foi muito mais utilizado do que as armas. ÉLIE MIZINGE: O porrete quebra mais, mas o facão é mais natural. O ruandês está acostumado com o facão desde a infância. Agarrar um facão na mão é o que fazemos toda manhã. Cortamos os sorgos, talhamos as bananeiras, desmatamos os cipós, matamos as galinhas. Até as mulheres e as meninas pegam o facão para as tarefas menores, como rachar lenha para a cozinha. É esse mesmo gesto para diferentes utilidades que nunca nos deixa desorientados. Quando você se serve do ferro para cortar o galho, o animal ou o homem, ele não dá palpite. Basicamente, um homem é que nem um animal, você o corta na cabeça ou no pescoço, ele morre por si só. Nos primeiros dias, quem já tinha matado galinhas, e sobretudo cabras, levava vantagem; compreende-se. Mais tarde, todo mundo se acostumou com aquela nova atividade e recuperou o atraso. (HATZFELD, 2005, p. 46) A forma como os tutsis eram reconhecidos pelos hutus no meio do “bruaá”7 das matanças é interessante, para não dizer assustadora, tendo em vista que ambos falavam a mesma língua, tinham a mesma religião, moravam no mesmo lugar e até mesmo as diferenças físicas não eram assim tão perceptíveis. A resposta é muito simples: os assassinos sabiam quem eram suas vítimas unicamente porque eram seus vizinhos, alunos ou professores, padres ou fiéis, médicos ou pacientes, gente que se viam todos os dias, e que nunca chegaram a ter verdadeiramente um conflito com essas pessoas. Era um vilarejo e todos sabiam da vida de todos, sem exceção. 7 Bruaá era uma das formas pela quais os hutus se referiam ao genocídio. Bruaá era usada como confusão, agitação. E, um dos fatos mais espantosos é que, em Ruanda, assim como em muitos lugares do mundo, vários ditadores já conseguiram a submissão de sua população, mas em nenhum caso foi registrado, assassinos que marchavam em grupos cantando, enquanto realizavam seu “trabalho”. IGNACE: Os que queriam cantar cantavam. Não escolhíamos canções especiais para reforçar o encorajamento, não cantávamos nenhum verso patriótico como esses das músicas do rádio, nenhuma palavra feia ou que caçoasse dos tutsis. Não precisávamos de estrofes de estímulo, escolhíamos com a maior naturalidade canções tradicionais que nos agradavam. Em suma, éramos um coral em marcha. Nos pântanos, bastava vasculhar e matar, até o apito final. Às vezes um tiro de fuzil substituía o apito, e essa era a única novidade do dia. (HATZFELD, 2005,p. 23-24)
Em Ruanda, as pessoas procuravam abrigo em locais que consideravam seguros como igrejas, conventos, hospitais, escolas e maternidades. No entanto, nenhum desses lugares foi poupado. Pelo contrário, o maior número de pessoas mortas de uma só vez foram ali registrados. E o pior é que essas pessoas geralmente procuravam abrigos nesses lugares porque alguma autoridade como prefeitos ou padres ou tinha encaminhado para lá. Ficavam protegidos uns poucos dias, subornavam o exército algumas vezes, mas a verdade é que o fim era inevitável. É como mostra o filme “Tiros em Ruanda”, onde a Escola Técnica Oficial abrigou e protegeu com a ajuda da ONU muitos tutsis e alguns hutus moderados também, no entanto, quando a ONU bateu em retirada alguns dias depois, deixou que aproximadamente 2.500 pessoas fossem assassinadas na Escola. Uma chacina “famosa” ocorreu em uma igreja católica, na montanha de Nyarubuye, onde centenas de pessoas foram mortas a facões e tiros de fuzil. Homens, mulheres, crianças, velhos. Nessa igreja, nem mesmo as estátuas ficaram intactas. Elas foram decapitadas, assim como os tutsis, um a um. E o curioso desse episódio é que os corpos e restos mortais da igreja de Nyarubuye nunca foram enterrados. Permaneceram da mesma forma e disposição com que foram mortos, para que servisse de lembrança, um verdadeiromemorial.
Gitera Rwamuhuzi era habitante local e participou do massacre da igreja. Para ele, como a Frente Patriótica Ruandesa foi responsabilizada pela morte do presidente Juvénal Habyarimana, o povo hutu de sua aldeia foi levado a acreditar que os tutsis haviam começado a matar os hutus por gente da cúpula e que depois viriam os lavradores comuns como ele. ‘Na manhã de 15 de abril de 1994, cada um de nós acordou sabendo o que devia fazer e aonde ir porque nós tínhamos feito um plano na noite anterior. De manhã nós acordamos e começamos a caminhar para a igreja [...] Éramos tantas pessoas que estávamos tropeçando uns nos outros. As pessoas que carregavam granadas lançaram-nas. Os tutsis começaram a gritar por ajuda. Enquanto elas gritavam, os que portavam arma abriram fogo. Elas gritaram que estavam morrendo, pediam ajuda, mas os soldados continuavam atirando. Eu entrei e, quando vi um homem, eu bati nele com uma marreta e ele morreu [...] Havia mais matadores do que vítimas. Quando nós entramos, era como se estivéssemos competindo para matar [...] Aqueles que nós atacávamos não diziam nada. Eles estavam apavorados e ninguém disse nada. Eles devem ter se sentido traumatizados [...] Eu vi gente com mãos amputadas, sem pernas, e outros sem cabeça. Eu vi de tudo. Especialmente gente rolando no chão e gritando de dor, sem braços, sem pernas. Gente morrendo em condições muito ruins. É como se nós tivéssemos sido possuídos por Satã [...] Nós não éramos nós mesmos. Começando por mim, eu acho que eu não estava no meu normal. Não se está normal quando se começa a massacrar pessoas sem motivo [...] Essas pessoas eram meus vizinhos. A imagem da morte deles talvez jamais deixará a minha mente. Todo o resto eu posso tirar da cabeça, mas essa imagem nunca irá embora’ ( RUANDA, 2004, p. 1-3)
A franqueza de seu depoimento assusta, porém, ele torna-se ainda mais verdadeiro quando Flora Mukampore, sobrevivente tutsi do massacre da igreja, relata sua experiência daquele dia. Ela teve 17 parentes mortos no genocídio e afirma que em 15 de abril de 1994, as pessoas que estavam na igreja acreditavam que ninguém ousaria atacar um lugar sagrado. E acrescenta que nunca imaginou que todos pudessem ser mortos, pois eram muitas pessoas. E tudo se torna ainda mais real quando declara que seu vizinho Gitera realmente estava entre os assassinos. ‘Todos aqueles que estavam sendo mortos caíram em cima de mim porque eu estava perto da porta [...] Meu corpo estava coberto de sangue, que começou a secar, então os assassinos pensaram que eu estava morta [...] Pude ouvir um homem se aproximando e acho que ele percebeu que eu estava respirando. Ele bateu na minha cabeça perguntando ‘essa coisa ainda está viva?’ Imediatamente ouvi todo o meu corpo gritar ‘uhaaa’. Algo em mim mudou para sempre. Tudo parou. Depois, quando o vento frio soprou, eu recuperei os sentidos. Mas não percebi que haviam corpos ao meu redor. Não lembrava o que havia acontecido. Pensei que eles seriam pessoas normais, então dormi ao lado deles, como havíamos dormido antes da chegada dos assassinos. Mais tarde ouvi uma garota dizendo: ‘ela está podre, acabou para ela. Ela parece humana para você?’ Então percebi que todos ao meu redor haviam morrido. Quando eles me fizeram sentar, percebi que haviam vermes e comecei a remove-los do meu corpo. Você consegue imaginar viver entre os mortos? Em algum momento Deus me ajudou e me fez inconsciente porque se eu não estivesse, talvez tivesse cometido suicídio [...] Veja só, as pessoas morreram no dia 15 de abril e eu vivi entre eles até o dia 15 de maio’. (RUANDA, 2004, p. 1-2)
Outra igreja que foi alvo de ataques freqüentes foi a Sagrada Família que fica em Kigali. No dia 15 de abril de 1994, 150 homens foram mortos, e eram escolhidos um a um. “Os assassinos tinham listas, e muitos deles eram vizinhos das vítimas e podiam reconhecê-las ao primeiro olhar” (GOUREVITCH, 2006, p. 122). Bonaventure Nyibizi, um sobrevivente tutsi relata como conseguiu escapar com sua família naquele dia: ‘Entrei numa pequena sala com minha família, e assim que fechei a porta a Sagrada Família se encheu de soldados, milicianos e polícias. Começaram a perguntar por mim, mas por sorte não arrombaram a porta do lugar onde eu estava. Fiquei lá com minha mulher e as crianças. Havia umas vinte pessoas ao todo naquele cômodo minúsculo’ Bonaventure tinha com ele uma filha de três meses. ‘Mantê-la em silêncio foi o mais difícil’. (GOUREVITCH, 2006, p. 123) E ao ser perguntado sobre a atitude e postura dos padres, espondeu: ‘Um deles era bom, mas ele próprio foi ameaçado, então se escondeu em 13 de abril, e o outro padre responsável estava muito à vontade com a milícia. Era o famoso padre Wenceslas Munyeshyaka. Era muito ligado ao exército e à milícia, e andava com eles para lá e para cá. Em princípio não chegou a denunciar ninguém, mas não fez nada pelas pessoas’ (GOUREVICTH, 2006, p. 123). Na maternidade Sainte-Marthe, enfermeiras, parteiras e parturientes e cidadãs comuns vinham junto com seus filhos em busca de abrigo. Por três dias pagaram ao exército a quantia de 200 mil francos. Valérie: ‘No terceiro dia, não podíamos mais pagar uma soma daquela. Os militares disseram que não fazia mal, porque não podiam mesmo fazer mais nada por nós. Assim que saíram, os interahamwe chegaram. Eram muito numerosos, pois sabiam que aquela maternidade suíça era opulenta e tinha sido bem abastecida: com sacos de grãos, colchões de molas, água destilada e remédios. Primeiro apanharam tudo o que encontraram, sem deixar nada; depois mataram todos que encontraram, sem poupar ninguém; finalmente revistaram os cadáveres das mulheres de bom nível, para ter certeza de que não haviam esquecido nada’. (HATZFELD, 2005, p. 100). Negociar com o exército ruandês era uma prática muito comum naqueles dias. Para quem tinha uma boa situação financeira, é claro. O exército podia poupar a vida dessas pessoas por alguns dias em troca de produtos baratos como cervejas e cigarros. Jóias e alguns mil francos também eram oferecidos e poupavam vidas enquanto era conveniente e lucrativo para eles. Do mesmo modo, entre os hutus, aqueles que faltassem ao “trabalho” deveriam pagar multas ou cumprir castigos. FULGENCE BUNANI: Se estava doente, devia se explicar, abertamente.
Se pedia um dia de folga para preparar o urwagwa8, tinha de oferecer uma cota da bebida em barris. Se estava simplesmente fraco, pelo excesso de bebida durante a noite, a coisa podia passar sem problema; era compreensível, para qualquer pessoa, só que não devia se repetir logo em seguida. Mas ai de você caso aproveitasse para ficar zanzando no centro comercial durante o dia. Se você fosse pego, era mandado de volta imediatamente, na frente de todo mundo. (HATZFELD, 2005, p. 85). PIO MUTUNGIREHE: Todo dia subíamos até o estádio, depois decidíamos. Para os lavradores era obrigatório. Quem trapaceava era castigado com uma multa. Em geral ela custava 2 mil francos, mas dependia da gravidade. Se você não podia pagar, dava um garrafão de urwagwa ou uma folha de zinco de qualidade. Houve até quem pagasse a multa com uma cabra. (HATZFELD, 2005, p. 85). Embora os números não sejam precisos, em Ruanda, a grande maioria das mulheres tutsis foi estuprada antes de serem mortas. E era uma prática até natural e feita pelos homens sem remorso, já que aquelas mulheres deveriam ser mortas de qualquer jeito, por que não se divertir com elas um pouco antes? 8 Urwagwa é uma bebida muito conhecida nas colinas, é um vinho de banana muito forte. Sua produção é feita enterrando-se bananas por três dias em um buraco para que fiquem maduras. Espreme o suco e mistura-se com farinha de sorgo para fermentar por mais três dias, sendo que deve ser consumido nos três dias seguinte à fabricação. ADALBERT MUNZIGURA: Havia duas categorias de estupradores. Os que pegavam as garotas e a usavam como mulheres até o fim, ás vezes até na fuga para o Congo. Aproveitavam-se dessa situação para dormir com umas tutsis bonitonas, mas em troca demonstravam um pinguinho de consideração. E os que as agarravam para fazer sexo só para se divertirmenquanto bebiam. Violentavam-nas por um tempinho e logo depois as entregavam para ser mortas. Não havia nenhuma recomendação das autoridades, as duas categorias tinham liberdade de fazer o que quisessem. (HATZFELD, 2005, p. 112) A conseqüência ainda mais triste é que dessas mulheres estupradas, aproximadamente 65% contraiu AIDS, assim como houve um grande número de crianças infectadas e abandonadas por terem sido fruto dessas violências. E em 1999, aproximadamente 130 mil crianças com menos de 05 anos estavam infectadas pelo vírus do HIV, segundo os dados fornecidos pelo Programa Nacional Ruandês de Luta contra a AIDS (PNLS). Prova disso é o relato feito pela jornalista Graciela Damiano, que esteve em Ruanda em 2001 e entrevistou uma sobrevivente tutsi: Winifrid Mukagihana, uma tutsi que conheci em Kigali, disse que cinco dos seis filhos dela foram mortos no genocídio de 1994, assim como o marido. Aparentando ter mais de 40 anos, ela diz que foi estuprada por um grupo de milicianos hutus. Ela estava grávida na época e deu à luz apenas para ver o recém-nascido atirado aos cães. Ela também contraiu o vírus HIV, como 65% das mulheres estupradas durante o genocídio. Winifrid vive de memórias, caridade e uma indenização do governo que mal chega aos 50 reais por mês. (2003, p. 3). Durante os 100 dias do genocídio, nenhum casamento ou batizado foi realizado. Nenhuma partida de futebol ou celebrações importantes foi comemorada. O único motivo que os hutus achavam para festejar eram os bons tempos de fartura em que estavam vivendo. Isso porque os hutus não criavam vacas, na verdade não sabiam como criá-las. Viviam da lavoura e se davam por satisfeitos quando não precisavam comprar comida no mercado. Aliás, as vacas eram motivos de discussões entre os vizinhos tutsis e hutus, porque estes reclamavam que as vacas dos tutsis invadiam suas plantações e estragavam tudo. Como exposto no capítulo anteiror, no tópico 1.1 Surgimento das “Etnias”, os tutsis tinham melhores condições econômicas que os hutus e por isso não só comiam, como se vestiam melhor. Tinham rádios em suas casas, jóias e boas folhas de zinco em seus telhados. Com as matanças vieram as pilhagens e com isso os hutus desfrutaram de tudo aquilo que nunca haviam tido na vida. Comiam carne, vestiam- se bem, ouviam bons rádios e cobriam suas casas com folhas de zinco. Para muitos, a felicidade provocada pelo genocídio os cegava quanto aos sentimentos de culpa e remorso. FULGENCE: Durante as matanças, os vizinhos davam a você, de passagem, mais do que se podia pôr na marmita, uma fartura, e não cobravam nada. A carne passou a ser tão insignificante como a mandioca. Os hutus sempre se sentiram frustrados por não ter vacas, pois não sabiam cria-las. Diziam que elas não eram gostosas, mas era por causa da penúria. Por isso, durante os massacres, se esbaldavam, comiam carne de manhã e à noite. (HATZFELD, 2005, p. 73) Clémentine: ‘De noite, as famílias ouviam música, havia danças folclóricas. Música ruandesa ou burundiense. Graças à grande quantidade de rádios e toca-fitas obtidos nas pilhagens, as famílias se divertiam com a música, em todas as casas. Todos se sentiam mais ricos, igualmente, sem ciúme nem fuxico, e se congratulavam. Os homens cantavam, todos bebiam, as mulheres trocavam de vestido três vezes por noite. A farra era maior que nos casamentos, eram bacanais diárias’. (HATZFELD, 2005p. 110).
Na verdade, os hutus tinham inveja dos tutsis, de sua boa vida e de seus bens. Por invejarem também suas feições, cortavam-lhes os pés nos “tendões de Aquiles” para que ficassem menores. Mas nada justifica a união dessas pessoas para matar quase 1 milhão de outras, que eram seus vizinhos e conhecidos. James Orbinski, ainda realizava trabalho humanitário em Ruanda nessa época. Ele era um físico canadense e descreveu a cidade naqueles dias: ‘Uma terra de ninguém. A única coisa viva era o vento, exceto nos bloqueios das ruas, e os bloqueios estavam por toda parte. Os membros da interahamwe eram apavorantes, sedentos de sangue, bêbados – eles dançavam um bocado nos bloqueios. Tinha gente carregando familiares a hospitais e orfanatos. Levava dias para se conseguir andar dois ou três quilômetros. E chegar a um hospital não era garantia de segurança’ (GOUREVITCH, 2006, p. 131). Comparações com o Holocausto são sempre feitas. No entanto, talvez, sem todo aquele aparato tecnológico dos quais dispunham, como “metralhadoras pesas, infra-estrutura ferroviária, fichários, caminhões com monóxido de carbono e câmaras de gás Zyklon” (HATZFELD, 2006, p. 82), os alemães não teriam conseguido matar tantos judeus. É por isso que, assustadoramente em Ruanda, com seus instrumentos arcaicos e subdesenvolvimento tecnológico, a matança se mostrou mais eficiente e ainda mais monstruosa, pois em 100 dias, quase 1 milhão de pessoas foram assassinadas. E ainda fizeram isso cantando. O povo era a arma, e isso significava todo mundo: a população hutu inteira tinha que matar a população tutsi inteira. Além de assegurar uma vantagem numérica óbvia, esse arranjo eliminava qualquer questão sobre responsabilidade que pudesse ser levantada. (GOUREVICTH, 2006, p. 94).
As contas são muito simples, porém, assustadoras. As estimativas mais precisas são de que entre 06 de abril e 4 de julho de 1994, foram mortos entre800 mil e 1 milhão de pessoas. Por isso, de 8 a 10 mil pessoas morriam por dia emtodo o país. Isso dá entre 333 e 416 pessoas mortas por hora, ou entre 5,5 e 6,9 vidas fossem exterminadas a cada minuto. A FPR, que avançava cada vez mais país adentro, conseguiu capturar milhares de líderes hutus e os mantinha em um estádio. Com isso conseguiam pouco a pouco negociar “trocas” com o Poder Hutu. A UNAMIR ajudou no acordo e fornecia transportes. E assim foram evacuando os “prisioneiros” pouco a pouco, caminhão a caminhão, em comboios. Os tutsis que se refugiavam em hotéis e igrejas foram salvos graças às ameaças da Frente Patriótica Ruandesa e eram levados em comboios para as zonas dominadas por ela. É o que mostra o filme “Hotel Ruanda”, onde vários comboios de pessoas foram sendo retirados do hotel.
Alguns desses comboios sofreram ataques pela interahamwe que bloqueava as estradas, pois suas partidas eram divulgadas pelo rádio também. Mas no dia 18 de junho parte o último comboio da ONU para os locais dominados pela FPR, levando Paul e sua família, que conseguiram salvar 1.268 tutsis e hutus moderados. A cidade estava dividida ao longo de seu vale central: a leste, onde Orbinski estava baseado, a FPR detinha o controle; a oeste, a cidade pertencia ao governo. A Unamir e os poucos funcionários de emergência como Orbinski gastavam horas em negociação a cada dia, tentandoviabilizar trocas de prisioneiros, refugiados e feridos entre os dois lados dalinha de frente. Sua eficácia era extremamente limitada. (GOUREVITCH, 2006, p. 131).
Em Ruanda, até os cachorros foram exterminados. Isso porque conforme a FPR ia avançando, matavam os cachorros que estavam devorando os corpos dos tutsis. A ONU finalmente atirava. Contra os cachorros, é claro. Isso para evitar possíveis problemas de saúde. O descaso da ONU, dos países ocidentais e vizinhos africanos é desconcertante. As Nações Unidas retirou de Ruanda 90% de suas tropas, passando a contar com um contingente de somente 270 soldados. E a palavra genocídio era ignorada por todos. Que ela não era pronunciada pelos assassinos, compreende-se; mas não ser dita por chefes e ministros de Estado para evitar uma
intervenção é ainda mais desumano do que seu próprio significado. A porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Christine Shelley, declarou: [...] rejeitar a denominação de genocídio porque ‘há obrigações que aparecem em conexão com o uso do termo’. Ela quis dizer que, sendo um genocídio, a Convenção de 1948 exigia que as partes contratantes agissem. Washington não queria agir. Então Washington fazia de conta que não era um genocídio. (GOUREVITCH, 2006, p. 149) JEAN-BAPTISTE: É uma verdade: entre nós, nunca a pronunciávamos. Muitos não sabiam nem mesmo o significado da palavra ‘genocídio’. PIO: Um genocídio parece bem extraordinário para quem chega depois, como o senhor, mas para quem se deixou confundir pelas palavras dos intimidadores e pelos gritos de alegria dos colegas, isso se apresentava como uma atividade habitual. (HATZFELD, 2006, p. 250 e 256). Enquanto isso a FPR ia avançando do leste para o oeste e os hutus é que fugiam para o exílio agora. Os mesmo líderes que incentivavam as pessoas a matar agora, enfraquecidos e ameaçados pelo exército de aproximadamente 20 mil tutsis, encorajavam as pessoas a deixar o país e seguir para o exílio. A França, como sempre, apoiava os hutus e ofereciam-lhes mais armas e tropas francesas iam para a linha de combate. Então, no dia 02 de julho tomou Butare e em 04 de julho de 1994 conquistaram Kigali. A FPR era comandada pelo general Paul Kagame e nesse período, aproximadamente 1 milhão de hutus fugiram com medo de serem tratados da mesma forma com que trataram os tutsis.. Em 19 de julho, foi criado um governo de colisão entre a FPR e líderes do Poder Hutu, que tinha Pasteur Bizimungu como presidente e Paul Kagame como vice. As Forças Armadas passaram a se chamar ex-FAR e a FPR era apenas o antigo movimento rebelde, sendo que o novo exército de Ruanda foi chamado de Exército Patriótico Ruandês. Chega ao fim o genocídio de Ruanda. Porém, o imenso número de exilados nos países vizinhos como Uganda, Burundi e Zaire são preocupantes e passou a ser motivo de novas preocupações, massacres e doenças. Para muitos sobreviventes, aquela nação africana foi abandonada. Até mesmo para os assassinos, como Élie, o mundo inteiro virou-lhes as cotas “‘Os boinas-azuis, os belgas, os diretores brancos, os presidentes negros, as pessoas humanitárias e os cinegrafistas internacionais, os bispos e os padres, e finalmente até Deus’”. (HATZFELD, 2005, p. 164-165). Como surgiu um genocídio como este é difícil saber, as razões são muitas e complexas. Estão intrínsecas a seu povo, talvez. JOSEPH-DÉSIRÉ: ‘A fonte de um genocídio o senhor jamais verá, está enterrada bem no fundo nos rancores, sob um acúmulo de desentendimentos dos quais herdamos o último. Chegamos à idade adulta no pior momento da história de Ruanda, fomos educados na obediência absoluta, no ódio, fomos entupidos de fórmulas, somos uma geração sem sorte’ (HATZFELD, 2005, p. 193-194). E, o mais preocupante é saber que se as causas não forem combatidas, as pessoas punidas, o perdão aceito e a reconciliação proposta, casos como o de Ruanda podem acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar. Como se pode constatar no depoimento da ruandesa Jeannette: “’Quando houve um genocídio, pode haver outro, a qualquer momento no futuro, em qualquer lugar, se a causa continua presente e não sabemos qual é’” (HATZFELD, 2005, p. 172). O genocídio que aconteceu em Ruanda foi a pior chacina que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial. E muitos sequer sabem que Ruanda é um país da África. Um genocídio é sobrenatural, como dizem os ruandeses. Mas mais sobrenatural é o fato do mundo inteiro ficar de braços cruzados, vendo (ou não) o que se passa com seus semelhantes. A origem e razões de um genocídio devem ser sempre consideradas para que novos episódios voltem a acontecer. Ruanda hoje tem um governo estável. Com um líder que realmente pensa na “unidade ruandesa”. Tribunais foram criados, o perdão é difundido e a punição juntamente com a reconciliação são o melhor caminho para a construção de uma antiga nova nação onde tutsis e hutus possam viver em harmonia.